Gêneros populares na música indígena brasileira contemporânea

Brisa Flow
O que já foi um território com inúmeros povos nativos distintos compartilhando de algumas semelhanças culturais, hoje é um país repleto de culturas e influências de diversos povos do mundo. Algum desses povos estrangeiros invadiram o território hoje denominado brasileiro, trouxeram outros povos como escravos, dizimaram povos nativos, outros povos migraram pra cá e tudo resultou na miscelânea multicultural que se conhece hoje como cultura brasileira. Desde o conflito com a chegada dos portugueses em 1500, os milhares de indígenas do Brasil declinam violentamente em número devido ao massacre, escravização e aculturação em larga escala dos povos originários até os dias atuais. Havendo assim, de forma irresponsável, uma perda significativa de inúmeras tradições. Apesar dessa longa história de repressão para com a cultura indígena, no que tange à sua música, há um enorme campo a ser estudado e compreendido.

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Ainda em 1558, o pastor missionário francês Jean de Léry relatou alguns cantos Tupinambá e posteriormente o sacerdote jesuíta peruano Antonio Ruíz de Montoya registrou um extenso léxico de categorias musicais do Guarani antigo. Porém a música indígena só venho se tornar objeto de interesse e estudo a partir das pesquisas dos especialistas Villa Lobos e Mário de Andrade. Havia um fenômeno isolado onde Jesuítas missionários fixados em suas reduções desde o século XVI, construíram instrumentos, tocavam e cantavam, com o intuito de catequizar, junto aos índios. Este caso é conhecido apenas por escassos relatos literários e embora a música criada tenha sido nos moldes europeus, não há descrição suficiente para se analisar a possibilidade de uma primeira influência externa na música indígena.



A música indígena

Grande parte dos povos originários associa sua música ao universo transcendente e místico. Sendo empregada em rituais religiosos, ligadas a mitos fundadores e usada com finalidades de socialização, culto, ligação com os ancestrais, exorcismo, magia e cura. Tem papel importante também nos ritos catárticos, quando a música "ao trabalhar com proporções, repetições e variações, instaura o conflito ao mesmo tempo em que o mantém sob controle" (COELHO, 2007).


Para alguns povos a música foi um presente dos deuses, entristecidos com o silêncio que imperava no mundo. Para outros, a música é tida como originária do mundo dos sonhos, onde vivem os animais míticos e os ancestrais. Ali é conhecida pelas pessoas sem espírito, aquelas que por algum motivo estiveram no limiar da morte e de lá retornaram, tornando-se introdutoras de novas melodias após esse contato com o mundo do além. Mais comumente a criação de novas músicas se deve aos pajés, que as intuem em seus transes onde estabelecem contato com deuses e ancestrais, ou aos guerreiros mais distinguidos da aldeia, que sonham com elas. A sua música tem definido caráter socializador, estando presente em festividades grupais e na esfera privada, "sendo um elemento fundamental do processo de construção do mundo social e conceitual, e não como um mero epifenômeno ou reflexo deste" (Coelho, 2007).

Assim como a música em outros lugares do mundo, a música indígena brasileira é viva e está em constante mutação e renovação. Inclusive incorporando material não-índio e ainda mantendo seus valores e formas essenciais preservadas. Essa incorporação permite a inserção no meio popular, ajudando na propagação de ideias e pautas indígenas.

Katu Mirim
O cantor e instrumentista de origem Pankararu Gean Ramos é talvez o mais famoso fora do meio indígena, já tendo ganho prêmios internacionais e fazendo MPB falando sobre o povo Pankararu. A repper Katu Mirim (Katú) de origem Boe Bororo e criada em São Paulo fala sobre resistência e também é conhecida por seu ativismo. Por outro lado, a mineira filha de chilenos Mapuche e erradicada em São Paulo, Brisa Flow, tem seu repertório variado e aborda também temas abordados por reppers em geral. Assim também é Souto MC, também paulistana, descendente do povo Kariri, que já tinha uma trajetória no rap e venho nos últimos anos buscando sua ancestralidade e a inserindo em sua música. O grupo Oz Guarani da aldeia Tekoá Pyau em São Paulo é considerado o primeiro grupo de rap indígena, também falando sobre resistência e política.

Algo em comum sobre esses artistas é que, embora ambos até cantem trechos em idiomas originários, suas letras são majoritariamente cantadas em português. Mas como essa decolonialidade também pode servir de holofote não só para os povos e suas causas, mas também para as línguas, existem alguns artistas que reproduzem gêneros populares com letras em idioma indígena.

A banda Arandu Arakuaa, formada em 2008, é a primeira banda do gênero heavy metal a ter o repertório inteiro em língua indígena. Zhândio Huku, fundador do grupo, afirma ter nascido e morado até os 24 anos próximo dos territórios dos Xerentes e Krahô no estado de Tocantins. Ele é multi instrumentista e escreve as letras em Tupi antigo, Xerente e Xavante. Inspiradas em lendas, ritos e lutas de diversos povos originários do Brasil, o som mistura o metal com ritmos tradicionais nordestinos, utiliza instrumentos indígenas e Zhândio divide os vocais com uma vocalista. A formação da banda já sofreu várias alterações.

Arandu Arakuaa
O grupo de rap Bro Mc’s é considerado o primeiro grupo a fazer rap em língua indígena. Das aldeias Jaguapirú e Bororó, que ficam na cidade de Dourados no Mato Grosso do Sul, o grupo é formado por quatro rapazes Guarani Kaiowá que abordam nas letras a luta pela terra, a questão da identidade indígena, problemas como o consumo de drogas e álcool e os altos índices de suicídio das aldeias.

O número de artistas indígenas, tanto os que cantam em português, quanto os que cantam em língua nativa, vem crescendo exponencialmente em diversos ramos musicais. Incentivos e projetos como a Rádio Yandê, a primeira web rádio indígena do Brasil e o festival Yby, o primeiro festival só com artistas indígenas, fomentam uma cena e inspiram várias pessoas a começar um projeto musical que viabilize sua cultura nativa.

Internacionalmente existe o Coletivo de artistas Indigenous Resistance (IR). Um coletivo de artistas e DJs de dub, que faz parcerias com artistas do mundo inteiro, e que, a cada mix, conta histórias de indígenas dos locais em que estão colaborando. No Brasil, fizeram sobre Galdino, o indígena Pataxó que foi ateado fogo em Brasília. Um de seus objetivos é mostrar a conexão entre indígenas e africanos em diáspora no mundo inteiro. Seu primeiro CD foi lançado há 12 anos.


Sendo os povos indígenas brasileiros uma população historicamente massacrada e apagada, são sempre bem vindos projetos que realçam e reafirmam a cultura nativa, que é riquíssima e sempre se renova, nunca se deixando morrer. A cena contemporânea de artistas indígenas é forte e tende a crescer em todos os gêneros. Com a arte feita por descendentes e povos originários se apropriando de elementos seculares, ocidentais e outrora opressores, faz se tornar possível uma ascensão da música indígena no meio popular. Um movimento de cultura híbrida, mas que dessa vez seja escolha do nativo se misturar e não uma violência.

AGUYJEVETE.


Referências Bibliográficas:

ANDRADE, O. de. Manifesto antropofágico. In: Revista de Antropofagia. Reedição da Revista Literária publicada em São Paulo – 1ª e 2ª dentições – 1928-. 1929.

BALLESTRIN, Luciana. Entrevista de Luciana Ballestrin concedida ao site IHU On-Line. 2013

BASTOS, Rafael José de Menezes & PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. "Sopros da Amazônia: Sobre as Músicas das Sociedades Tupi-Guarani". In: MANA 5(2):125-143, 1999.

COELHO, Luís Fernando Hering. A nova edição de "Why Suya sing", de Anthony Seeger, e alguns estudos recentes sobre música indígena nas Terras Baixas da América do Sul. Universidade Federal de Santa Catarina, 2007.

COLAÇO, Thais Luzia. Novas Perspectivas para a Antropologia Jurídica na América Latina: o Direito e o Pensamento Decolonial. Florianópolis : Fundação Boiteux, 2012. 

DE ALMEIDA M. Berenice & PUCI, Magda Dourado. Outras Terras, Outros Sons. São Paulo: Callis Editora Ltd., 2003, pp. 52-53

HOUAISS, Antonio (apres.) Grande Enciclopédia Delta-Larousse. Rio de Janeiro: Delta, 1979. 15 v., 30 cm.
KRENAK, Ailton. Diálogos: Desafios para a decolonialidade. Entrevista concedida a Jaider Esbell. UnBTV. 2019.


Img¹: Tupinamba men dancing , Jean de Léry, woodcut, from Histoire d’un voyage faict en la terre de Bresil, ch. 8, Paris: Antoine Chupin, 1578, (©British Library Board, All Rights Reserve, G 7101)

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