Aglomeração de monstros na cidade

O Despertar dos Monstros (1968).

Por Gabii


Entretenimento, escapismo. No meio de uma preocupante pandemia, se procura nos produtos de mídia uma forma de se distrair, relaxar, mas por que não, um pouco de reflexão? Se focando no cinema, é difícil que obras sejam produzidas nesse momento, com exceções raras em produções menores e adaptadas para a situação. Porém, através de um olhar retrospectivo, é possível encaixar o que foi feito em um contexto anterior dentro das discussões atuais, assim as mantendo relevantes, mas no processo não as retirando seu significado original. Nesse artigo em particular, será traçado um paralelo entre O Hospedeiro (2006), Shin Godzilla (2016) e a atual batalha contra o novo coronavírus.

O Hospedeiro acompanha uma família sul-coreana que mora na beira do rio Han, administrando uma pequena barraca de comida no parque. Do rio, um monstro gerado pela poluição de uma indústria química americana emerge, levando embora a caçula da família, Hyun-seo, o que uni a família pelo desejo de a reencontrar, mesmo que as autoridades insistam que ela está morta. Em paralelo, uma crise nacional surge após a suposta origem de um vírus transportado pela criatura.
É importante lembrar que o filme de Bong Joon-Ho tem uma conexão direta com a situação atual, já que o mesmo foi lançado dois anos após o decretado fim do surto de SARS, uma epidemia de síndrome respiratória aguda grave, identificada pela primeira vez em Foshan, Guangdong, China, também causada por um coronavírus. Entretanto, diferente da nossa realidade de ontem e de hoje, o vírus do longa era falso, não podendo sequer ser chamado de gripezinha pelos mais negacionistas. O que poderia estar sendo dita com esse elemento? Algum tipo teoria da conspiração maluca? Jamais. Se tem algo no qual Joon-Ho mostra habilidade (no que ele não mostra, poxa?) é em trazer poderosas e ousadas discussões sociais através de seus longas. Se destaca aqui a discussão feita em cima do enquadramento recebido pelos personagens centrais, que são desumanizados e hostilizados, sendo colocados como bodes expiatórios na tentativa (bem sucedida) de se criar uma narrativa fácil e simplista, que retire dos personagens estadunidenses a culpa pela criação do monstro, colocando o alvo em um novo inimigo, no caso uma família de classe social baixa. O mesmo pode ser visto nos nossos noticiários, onde lideranças com mal desempenho no combate ao vírus se aproveitaram de uma narrativa xenófoba e anticomunista em seu discurso, dando continuidade ao mesmo tipo de estratégia usada em suas campanhas, muito baseadas na construção de um inimigo responsável pelos males do país. Independente da comprovação científica, a família de Hyun-seo seria perseguida e colocada como inimigo, em nome de um preocupante discurso ideológico, o que também se conecta outra camada com a forma que os Estados Unidos lidam com aqueles que classificam como oponentes de guerra (muitas vezes colocados naquela posição devido a ações dos próprios, que criam o que veem como o monstro que eles mesmos combatem), o que em tudo tem haver com o discurso atual do país em relação ao pandemia.

O Hospedeiro (2006).

Shin Godzilla tem uma temática um pouco mais distante. Dando continuidade a discussão central da franquia, o reboot se estabelece rapidamente como sendo sobre o Japão pós-segunda guerra, reerguido como potência após o bombardeamento de Hiroshima e Nagasaki, agora se reestruturando devido ao incidente de Fukushima e o tsunami de Tohoku, ambos ocorridos em 2011. Temáticas interessantes, bem discutidas no filme (tirando descuidos preocupantes, que podem gerar para muito um tom ultranacionalista e que muitas vezes não entende certas complexidades relacionados ao problema central, dando um exemplo a forma que o Japão perpétua certo imperialismo, mesmo tendo sofrido nas mãos de países com o mesmo tipo de ação, o que na minha visão não pode ser dito do longa original de 1954), mas como se encaixam necessariamente em nosso contexto? A resposta se encontra em como o filme lida como a figura do estado.
Centrado em uma tênue cooperação Japão-EUA, acompanhamos na trama a forma que representantes políticos lidam com o surgimento de Godzilla, aqui resultado de lixo nuclear, similar a criatura de O Hospedeiro, nos mostrando como dentro de uma crise nacional ou global, toda decisão tomada por nossos governantes tem um resultado, seja ele positivo ou negativo. Aliás, é complicado chamar a forma que os países lidam um com o outro no longa de "cooperação", visto que os interesses americanos sempre vêm em primeiro lugar de forma unilateral e protecionista, resultando em uma enorme complicação de segurança e ações absurdas, como um novo bombardeamento no Japão. Felizmente, é só ficção e não estamos vendo as consequências dessa política em ações como o desvio de equipamentos relacionados a pandemia, né?

Shin Godzilla (2016).

Se aqui a gripe era só histeria e não deveríamos criar pânico, em Shin Godzilla chega a ser dito para a imprensa que o kaijū sequer sairia do mar, por antes de passar por uma mutação não aguentar o peso de suas próprias pernas. Muito discurso mal embasado, pouca responsabilidade em se tomar ações concretas que ajudem a se lidar com o problema. 
Nessa ficção, vemos o governo antes ignorante e mal posicionado, evoluir e começar a lidar com a situação de forma adequada e que priorize acima de tudo a preservação da vida através de decisões longe de bidimensionais, chegando assim ao tema central do filme e seu maior paralelo com nosso contexto atual, ou seja, como sociedades podem lidar com crises e se reerguer posteriormente. Em nosso mundo, nossas lideranças negacionistas e de ações perigosas (talvez simplesmente criminosas) não aprenderam nada (por pouco sequer a necessidade de usar uma máscara), fazendo questão de deixar claro que não vão, ignorando que o coronavírus é um monstro grande demais, que não se limita a destruir apenas maquetes e ruas de computação gráfica.

A Ishirō Honda, Hideaki Anno, Shinji Higuchi e Bong Joon-Ho, um agradecimento, mesmo que suas lições não tenham sido ouvidas.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas