LITERATURA | Contos Negreiros, de Marcelino Freire


Quando se lê a palavra “negreiro”, nossa mente remete aos anos de escravidão negra africana entre os séculos XVI e XIX. O mesmo ocorre ao ouvirmos o termo negreiro ser pronunciado, pois estava sempre acompanhada pelas palavras “navio” e “tráfico”. Então, por carregar esse peso, a impressão que o título Contos Negreiros passa inicialmente é a de se tratar de contos sobre a escravidão negra no Brasil. E essa impressão não poderia estar mais correta.
Não se trata de histórias passadas durante o período colonial, mas de seu remanescente e nosso contemporâneo agora. Mesmo a população considerada negra estando em maior número no país, desde a abolição assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888, os negros são considerados uma minoria (diante do poder e imposição dos brancos) e oprimidos de forma cruel até os dias de hoje junto com outros grupos também considerados minorias.
Na sociologia, o termo “minoria” normalmente é um conceito puramente quantitativo, referindo-se ao subgrupo de pessoas que representa menos da metade da população total, sendo certo que, dentro da sociedade, ocupa uma posição privilegiada, neutra ou marginal. Todavia, no aspecto antropológico, a ênfase é dada ao conteúdo qualitativo, referindo-se aos subgrupos marginalizados, ou seja, minimizados socialmente no contexto nacional, podendo, inclusive, constituir uma maioria em termos quantitativos. Dessa forma, para ser objeto de tutela internacional, a minoria deve, necessariamente, ser caracterizada pela posição de não dominância que ocupa no âmbito do Estado em que vive.(MORENO, 2009, pg. 152)
Ainda que, como minoria, o negro lute para conquistar seu espaço, conseguido algumas vitórias durante o caminho, o status de povo oprimido ainda permanece. 
Em nosso entendimento, as regiões periféricas, apesar da violência sistêmica, têm se esmerado na busca de alternativas de superação da realidade estigmatizada do indivíduo que vive humilhado, sem perspectivas e abandonado no gueto.(SOUSA, 2012)
Por esta razão, Marcelino Freire traz os contos negreiros como um retrato da vivência negra contemporânea no Brasil, e o peso de quem ainda sente um período escravidão que nunca acaba.
Marcelino abre o livro evocando a famosa música Aquarela do Brasil, samba composto originalmente por Ary Barroso. “Brasil, do meu amor. Terra de nosso sinhô.” é o trecho escolhido pelo autor para iniciar sua obra.
No recorte de uma das canções mais conhecidas da MPB, o insight do Marcelino, dentro do contexto do livro, principalmente pelo "sinhô", e essa variação que não estará presente na letra da música ao se procurar na internet, representa não apenas o que se fala, mas o que é o Brasil, um país construído no suor e trabalho de escravos negros, indígenas e imigrantes. 
Publicado em 2005, pela Editora Record, a edição de Contos Negreiros traz uma apresentação escrita por Xico Sá, emulando o cantar de Marcelino. Fazendo paralelos a Gilberto Freyre, e analogia ao ditado popular "Rapadura é doce mas não é mole não". 
Os contos deste livro não são chamados de contos, e sim como Cantos. Remetendo a epopeias, nesse caso cantando a saga de um povo escravo que nunca foi abolido.

O primeiro canto, Trabalhadores do Brasil, que fala sobre o esforço do negro que se submete a todo tipo de trabalho para sobreviver, faz algo semelhante ao que fez Neil Gaiman no livro Deuses Americanos, onde ele traz deuses de mitologias arcaicas de diferentes culturas personificadas como pessoas comuns vivendo nos Estados Unidos. Nesse canto, cada personagem carrega o nome de um Orixá africano do Candomblé, religião afro brasileira que resgata a cultura Iorubá. Esses negros com nomes de Orixás, são árduos trabalhadores que lutam para sobreviver, representando todo um legado místico neles escondido por trás da marginalização.





Marginalização essa, tão carregada e enraizada que se segue por todo o restante do livro. Em Solar dos Príncipes, o autor ironiza a mídia jornalística presente nas favelas, invertendo os papéis, mostrando o preconceito que a elite tem com os negros, quando tratam sua realidade nos morros como algo exótico. Em Esquece, a narração do ponto de vista do negro marginal, o dos noticiários, a visão do negro como bandido. 
Algo muito forte na vivência do povo, é o elitismo, conceito que consiste em favorecer grupos específicos diante de outros grupos com menor privilégio.

O elitismo provém, não da prosperidade ou de funções sociais específicas, mas de um vasto e complexo educacional e cultural, corpo de símbolos, inclusive de condutas, estilos de vestimenta, sotaque, atividades recreativas, rituais, cerimônias e de um punhado de outras características. Habilidades e aptidões que podem ser ensinadas são conscientes, enquanto o grande vulto de símbolos que forma o verdadeiro elitismo verdadeiro é considerado utópico como a própria República de Platão e Aristóteles, não é deste mundo, portanto é inconsciente.
(LEWELLEN, 1983, pg. 112)
Nesse contexto, existe o elitismo dos brancos acima dos negros. 
(...) devemos ter em mente a profunda e ambivalente fascinação do pós-modernismo pelas diferenças sexuais, raciais, culturais e, sobretudo, étnicas. Em total oposição à cegueira e hostilidade que a alta cultura européia demonstrava, de modo geral, pela diferença étnica —, não há nada que o pós-modernismo global mais adore do que um certo tipo de diferença: um toque de etnicidade, um "sabor" do exótico e, como dizemos em inglês, a bit of the other (expressão que no Reino Unido possui não só uma conotação étnica, como também sexual).
(HALL, 2006, pg. 337)
Reflexo disso, está no canto IV, Alemães Vão À Guerra, que mostra a voz de um estrangeiro e seu fascínio por corpos negros, deixando a entender a prática de tráfico humano para fins sexuais. E esse viés vai além da elite branca e transbordado em diversos meios sociais, como mostrado no canto Vanicléia, onde além da exploração da mulher também representa a violência doméstica.

Em Linha do Tiro, referência à linha de ônibus homônima que circula em Recife, além do estereótipo de negro assaltante já usado anteriormente, é presente uma pré-ideia de negro pedinte e vendedor de balas. 
Voltando ao tráfico humano, Nação Zumbi brinca com o símbolo negro Zumbi, referente a nação oriunda de Zumbi dos Palmares, com o conceito de “zumbi” monstro morto-vivo conhecido por histórias de terror como o fantasma que vaga pela noite morta. Abordando o tráfico de orgãos e a necessidade por sobrevivência para se alimentar, mesmo que pra isso se tenha que vender um rim.

Em Coração, Marcelino evidencia os homossexuais, tema presente em outras obras do autor. Fala como gays se relacionam, ama e não tem coração. Como todo mundo. E ainda sim, são discriminados e violentados.

O canto Caderno de Turismo, fala do pessimismo e do sonho do negro, de querer viajar, conhecer o mundo, e a morte desse sonho pelo medo, necessidade de ficar, falta de condições de ir, e a impossibilidade de se conseguir algo que se almeja e se está muito distante. Esse pessimismo é influenciado pela falta de representatividade, não se vê negro viajando, conhecendo o mundo. Da mesma forma que não se vê negro na televisão, o que resulta em brancos sendo ídolos de negros, como no canto Nossa Rainha, onde a apresentadora Xuxa é a grande influência de uma criança pobre, que a Xuxa nunca representou, mas mesmo assim é a referência que a criança tem, e a única que vê na televisão. 

Do pessimismo, o canto Totonha leva ao conformismo em ser pobre, ignorante e esquecido, pois do seu ponto de vista, não adiantaria. “Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever. Ah, não vou.” (FREIRE, 2005, pg. 81)

Em Polícia e Ladrão, analogia a brincadeira infantil que simula ladrões e policiais, se mostra mais uma vez o negro como bandido, mas relutante, saudosista, arrependido. Com medo. Ainda na infância negra, o canto seguinte, Meus Amigos Coloridos, conta a vivência de um carioca até sua juventude, e a descoberta de sua sexualidade. Mas no canto seguinte o assunto volta à infância e remete ao canto Nossa Rainha, onde um menino negro deseja uma “loira gostosa”, por ser o que é representado como mulher bonita na mídia. Mas teme pela sobrevivência e manutenção de um relacionamento com essa loira sendo negro e pobre. 

Retomando à questão sexual já abordada também em outros cantos, o livro traz Meu Negro de Estimação, retratando um relacionamento entre um negro submisso, tanto sexualmente quanto financeiramente. Prefere depender de alguém que o explora sexualmente, do que a miséria e a violência da favela. Prefere a servidão. O canto também trata da fetichização negra, presente em Alemães vão à Guerra, onde a inversão de papéis é só fantasia sexual. “Meu homem diz que eu serei seu escravo a vida inteira”. (FREIRE, 2005, pg. 102)

O último canto, Yamami, aborda a marginalização do índio. Pela visão de um estrangeiro que despreza indígenas, a narrativa trata de pedofilia, prostituição, e como o povo indígena sofre, assim como os negros, o legado da escravidão.


Nascido em Sertânia, vivido em Recife, o morador de São Paulo, Marcelino Freire tem um estilo próprio de narração, mesmo que semelhante a outros escritores que declamam, o cantar de Marcelino é insalubre, intimidador, solto e afoito. Não há melhor adaptação de seus escritos do que narrado por ele próprio. Sua linguagem é oral, escrita, cantada, sendo convidativa e desafiadora. 

Seus temas, embora se repitam ao longo do livro, carregam subjetividades e nuances, crueldades do mundo real e também vivência.


Marcelino Freire é arretado!








REFERÊNCIAS
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Abolição da Escravidão e dia da Consciência Negra. Brasília: Edições Câmara, 2008.

FREIRE, Marcelino. Contos Negreiros. Rio de Janeiro: Grupo Editorial Record, 2005.

GAIMAN, Neil. Deuses Americanos. São Paulo, Intrínseca, 2016.
HALL, Stuart. Da diáspora – identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

LEWELLEN, Ted C. Political Anthropology – An Introduction. Massachusetts: Bergin & Garvey Publishers, l983.

MARINGONI, Gilberto. O destino dos negros após a Abolição. Desafios do Desenvolvimento. São Paulo: edição nº 70, 2011.

MORENO, Jamile Coelho. Conceito de minorias e discriminação. Revista USCS - Direito e Humanidades, edição nº 17, 2009, pgs. 141-156.
SOUSA, Rafael Lopes. O movimento hip hop: a anticordialidade de “república dos manos” e a estética da violência. São Paulo: Annablume, 2012.





Este texto também é acadêmico. PDF disponível aqui: https://drive.google.com/file/d/11E7oUvClbQmCfPkgDg0sDPeNZrVw1_0M/view?usp=sharing

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