CONTO | Sebastian



Por João Carlos


Sebastian, o caixeiro viajante, acaba de perder suas mercadorias num jogo de baralho em Pelotas. Consultou uma cigana dias antes que lhe prometeu que ele iria ganhar rios de dinheiro em qualquer empreitada que se envolvesse.

“Amaldiçoada seja esta moura” pensava enquanto remoía o ódio a si mesmo por ter acreditado em bendita pagã. Só lhe restara um cavalo que ele teve que pegar emprestado, sem que o dono soubesse, e sair troteando na velocidade do negrinho no início da noite. Faltava muito para chegar em seu destino, Bagé, e a noite já estava em seu ápice com um céu carregado de nuvens. Fez um calor infernal nesses dias de fevereiro e fazia tempo que não chovia. Ele não era muito bom em discernir o tempo e mesmo se fosse não teria muita escolha depois do que fizera. Olhou para o céu que começou a relampejar, fez um sinal de cruz e seguiu viajem. O vento já soprava fazendo seu lenço esvoaçar como se fizesse um sinal para alguém que vira ao longe. As pequenas e frias gotas de chuva começavam a cair, e ao encostar em suas costas lhe fez ter um tremelique pelo frio que a garoa vinha causando. Pouco antes da chuva começar a mostrar o poder destrutivo de Deus ele avistara um pequeno rancho, bateu as esporas e fora como um taura em busca de abrigo.

Era uma tapera com um pequeno estabulo. Seu primeiro intuito foi de que seria mais seguro seguir viagem na chuva ou se meter no meio de um capão do que correr o risco de morrer soterrado, mas ainda assim apeou do cavalo e o amarrou ao estabulo e foi bater na porta da tapera. Das frestas da porta e de uma única janela torta via-se pequenos feixes de luz vindos uma lamparina de querosene. A chuva já começara a engrossar e o vento cada vez mais forte trazia os pingos de chuva como chicotadas em suas costas. Ele começara a bater com força desesperada e a gritar: “Poderiam dar uma pousada para um bom cristão? Não ando de arma e respeito os dias santos...” Para um bom cristão ele começara bem, sempre andava com uma adaga escondida no cano da bota e nas ultimas festividades de natal gastara todo o seu lucro comercial com o chinaredo de Porto Alegre, depois disso passou fome por uma semana.

Alguém abriu a porta cuidadosamente. Sebastian quase não via a face da boa alma devido a escuridão de dentro da tapera. Iluminada apenas por uma lamparina em cima de uma mesa rústica, a luz dançava com o vento e as vezes tinha-se a impressão que era uma salamandra pronta para fugir num único descuido dos viventes ali presente.

“Entre jovem.” Pela voz era um senhor de idade e ele estava sozinho na tapera. Havia quatro toras usadas como bancos em torno da mesa, o chão da casa era terra batida e o teto feito de taquaras. Ao sentar Sebastian fez novamente o sinal da cruz, com o clarão de relampejo e a lamparina que se esforçava para não se apagar ele percebia aos poucos os detalhes da casa humilde do velho senhor e o próprio rosto de quem lhe dava pouso. Era um rosto torrado pelo sol, trabalhado pelo tempo e pelas perdas que a vida causara. A tempestade amedrontava Sebastian e o silêncio entre os dois deixava a situação um pouco desconfortável, até que o velho resolvera puxar assunto. O senhor não perguntara muitas coisas a respeito de Sebastian, mas contava causos de sua própria mocidade, de como se apaixonara por sua falecida esposa, de como Nosso Senhor levara sua única filha cedo demais, falara das plantações e invernadas do gado, contara que já dera tiros em lobisomens e jurava de pés juntos que já vira o Negrinho por esses pagos tropeando em noite clara de lua cheia. A voz do velho, o jeito paciente de contar os causos, as pausas que fazia para lembrar-se das datas, nomes e lugares, isso começara a irritar Sebastian que estava acostumado ao movimento esplendoroso da juventude de seus trinta e dois anos. Parecia que a tempestade nunca cessaria, parecia que Nosso Senhor o estava castigando no purgatório. Ele não queria parecer mal-educado, mas quando a tempestade acabou ficando somente uma chuva fraca e sem ventos, Sebastian soltara um "aleluia" quase que involuntariamente, tal atitude fez o velho senhor calar-se e ficar estático olhando para ele. Sebastian foi levantando e agradecendo ao velho senhor, mas ele deveria partir pois tinha compromissos urgentes em Bagé. Saindo do rancho, dois quilômetros a frente a chuva parou de vez e as nuvens começaram a se dispersar fazendo aparecer a aurora de um novo dia que surgia timidamente.

Passara um ano após esse incidente e Sebastian percorria o mesmo caminho em situação semelhante, resmungando para si que as estrelas nada dizem a respeito da sorte de um homem. Avistou o rancho e algo estava diferente, ele foi se aproximando em trotes lentos e olhando e olhando e via que o rancho estava destruído. Parecia uma destruição de anos atrás, pois havia uma forte vegetação de mato e umas pequenas arvores crescendo dentro da tapera que não tinha mais nem metade das paredes, o pequeno estábulo não via nem sinal de que houvera algum. Atrás do rancho, uns quinhentos metros, havia um pé de umbu e embaixo do pé parecia alguma estaca e ele não fazia a menor ideia do que seria, deu de ombros, virou de norte e tomou o caminho de volta na estrada apenas intrigado com tal situação. Dois meses de volta em Pelotas carteando com outros comerciantes, peões e gaudérios dessas estâncias, surgiu um assunto de um rancho assombrado cujo dono morrera há quase dez anos. Diziam que seu espirito ficava na estrada próxima de seu rancho para dissuadir viajantes em noite de lua cheia. Todos que tinham contato com ele ficavam loucos e tinham sua alma destinada a vagar pelo esquecimento. Um arrepio subiu a espinha de Sebastian até seu último fio de cabelo. Não conseguira mais se concentrar no baralho depois desses tipos de conversa, jogara sua última rodada e fora para a pousada, depois desses causos tomava sempre o cuidado de viajar durante o dia e sempre tomava pouso em locais movimentados.

Passaram uns cinco anos e Sebastian se casara, largou a vida de caixeiro viajante e se dedicava ao comercio local de Pelotas. Sua esposa lhe dera dois filhos saudáveis e sua vida corria bem, porém algo que só quem já teve uma vida livre sente falta quando olha para o horizonte e ao invés do por do sol enxerga apenas cercas que se erguem cada vez mais. Num domingo ao meio dia, sem dizer nada, Sebastian encilhou o cavalo e saiu troteando como que fugindo de assaltantes. Foi em direção ao rancho e já estava no entardecer, olhando para a tapera cada vez mais destruída com o tempo, ele avistou novamente o umbu que ficava atrás, com o sol do final da tarde o umbuzeiro fazia sombra na estaca, que permanecia ali, apesar de tudo. Foi se acercando do pé de umbu e percebendo que a estaca era uma cruz mal feita, a madeira já estava podre, porém resistira todo esse tempo. Ele desencilhou do cavalo, que ficou silenciosamente pastando. Sebastian foi em frente a cruz, fez o sinal em respeito e sentou sobre os calcanhares, enrolou um palheiro, colocou na boca mas não acendeu, e ficou encarando por um tempo aquela madeira velha. As folhas começaram a balançar devido ao vento que soprava do Uruguai, então Sebastian começou a falar da vida que estava levando, do desenvolvimento das grandes cidades, de seu casamento, de seus filhos, das guerras intermináveis, e de suas projeções para o futuro.

Assim como a árvore fora para o tumulo daquele velho senhor solitário, dele sobrou apenas a sombra projetada da luz de alguém que espera uma pessoa para conversar nos momentos mais solitários e infinitos dos dias.

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