CONTO | Uma Breve História de Amor


Conheci Rosângela em um lindo e ensolarado leito de hospital. A luz da janela refletia em seu tio ali imóvel com papa escorrendo pela boca.

Seus olhos profundos e vermelhos fitavam meus ossos a mostra na perna que seria em breve amputada.

Não sei dizer ao certo se tivemos tempo de nos apaixonar. Ela vinha visitar o tio as vezes, que ficava no mesmo quarto que eu. Passávamos horas e horas em silêncio. Nem o tio dela falava nada, nem eu tinha coragem de dizer alguma coisa.

Passava aquelas horas de silêncio formulando conversas. O que eu poderia perguntar? Não tinha coragem nem de dizer bom dia.

E se ela perguntasse o que me aconteceu? Como eu ia dizer que bebi veneno, me arrependi, e um carro me atropelou no caminho do hospital? Seria interessante dizer que fiz endoscopia, e irei perder as duas pernas?

A oportunidade de conversa surgiu quando o tio dela começou a agonizar. Rosa tentou acionar o aparelho de chamar a enfermeira, mas não funcionava. Então eu disse "eu chamo pelo meu" e ela respondeu agradecendo.

Ela disse "obrigada". Mas o que eu poderia dizer em seguida? Logo a enfermeira apareceu e já perdi minha chance de conversa. Nunca mais terei outra.

A enfermeira se aproximou e arrancou seu nariz na mordida. Fiquei horrorizado e não entendi o motivo. Até que mais gente entrou no quarto, todos com os rostos desfigurados. Só então percebi que o rosto da enfermeira também estava em escárnio. E agora já devorava o rosto de Rosângela, que logo ficou igual a eles. Ela então, descontroladamente, devorou o próprio tio.

Eu presenciava tudo, apenas esperando a minha vez. Mas talvez minhas pernas escarnecidas tenham passado a impressão de que sou um deles. Então todos foram embora.

Estou aqui faz quatro dias. Não tem mais soro, nem água. Minhas pernas já apodrecem e logo irei morrer de fome, ou de doença.

Mas ao menos pude ouvir Rosângela me dizer algo antes de não poder dizer mais nada.


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